Flora, de 9 anos, garante que é tagarela somente fora da escola. A menina tem muito o que falar. Na escola, fica quietinha porque gosta de matemática e até acha fácil. Adora as aulas de português, de redação e também de inglês. As palavras se misturam ao olhar doce e sorridente. Em casa, devora os gibis da turma da Mônica. Diverte-se também em contar as suas histórias, das amigas da escola, das viagens que fez para o Nordeste e dos filmes e desenhos que assiste na TV. A tagarela também sabe que está em um longo tratamento para cuidar de um “dodói”, como os pais explicam.
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A mãe, Cris Pereira, e o pai, Guto Martins, ambos músicos de Brasília e pais também da jovem Poema, de 15 anos, aprenderam que é necessário falar e dar visibilidade a esse dodói. “É fundamental falar sobre o câncer infantil”, diz a mãe, sambista. Além disso, fazem questão de divulgar que os sistemas públicos de saúde, desde o diagnóstico, e de educação têm sido fundamentais na luta por Flora.
Primeiros sinais
Cris solta a voz porque sabe que pode ajudar outras pessoas a prestarem atenção em sinais que podem fazer toda a diferença no tratamento. “Não pode haver tabu”, diz Guto. Cris recorda que o primeiro sinal em Flora foi aos seis meses, um pequeno estrabismo do olho esquerdo. Eram os primeiros sinais do astrocitoma pilocítico, um tumor na cabeça que, no caso de Flora, pressiona a parte anterior ao olho.
Depois da menina apresentar outros momentos de indisposição, e de tentarem encontrar o que estava ocorrendo, um ano depois, o casal recebeu a notícia que ninguém queria receber. O dia era 3 de outubro de 2016, uma sexta-feira, quando pediram que fosse feito um exame mais detalhado em função do olhinho estar um pouco mais saltado. O casal, quando se viu rodeado por diferentes profissionais, sabia que algo havia sido descoberto.
“Foi como se a gente tivesse passado por um portal e que nunca nada seria como antes”, recorda a mãe. O tumor na cabeça da criança já tinha seis centímetros. Três dias depois a criança passou pela primeira cirurgia.
Um mundo de pensamentos surgiu. Mas, inicialmente, descobriram que era necessário se resignar e lutar. “Foi muito importante não nos sentirmos sozinhos. Eu conto essa história que foi vivida em 72 horas em que tudo mudou”. Inclusive o olhar deles para outras pessoas. Ao observar a vida hospitalar, conheceram histórias de pessoas em situações ainda mais delicadas.
Vivendo depois do “portal”
A primeira cirurgia seria apenas o começo de uma jornada intensa que está no caminho de completar uma década. Em novembro daquele ano começaram as sessões de quimioterapia. Os ciclos foram acompanhados, inicialmente, com muita surpresa para os pais. A rotina fez com que eles parassem de contabilizar quando chegou ao número 120. “Entendemos que os protocolos são para fragilizar o tumor a ponto que essas células parem de se produzir”.
Ao longo desse processo, não foi raro para o casal ver mães abandonadas com seus filhos doentes. Mulheres que, literalmente, vivem em hospitais. Guto vê menos homens acompanhando os seus filhos em tratamento. “Acho muito triste isso. A gente sempre se revezou muito. Há mulheres cuidando de crianças sem nenhuma rede de apoio, são pessoas em vulnerabilidade real sem dinheiro para fazer um lanche”.
Os dias são diferentes uns dos outros, mas acostumaram-se que é necessário viver com pragmatismo e intensidade cada momento. Atualmente, por causa da agressividade do tumor, Flora passa por um tratamento chamado de “terapia-alvo”, feito através de mapeamento genético. Medicamentos custam caro. São necessárias duas caixas por mês (cada uma custa cerca de R$ 6 mil). Atualmente, a família tem sido atendida por decisão judicial que garante o pagamento por parte do plano de saúde.
Diagnóstico precoce
Segundo o neurocirurgião pediátrico Márcio Marcelino, do Hospital da Criança de Brasília – que atende pelo Sistema Único de Saúde (SUS) – é muito importante a iniciativa de trazer visibilidade e falar sobre o câncer infantil. Principalmente porque as primeiras manifestações podem passar despercebidas e não se pode fugir dessa possibilidade.
“Essa família ficou frequentando emergências e emergências de diversos hospitais. Não é só no Brasil. A gente tem documentado inúmeras iniciativas fora do país de conscientização e de alerta dos serviços de saúde para isso”, afirma o especialista.
Ele explica que o diagnóstico precoce pode fazer toda a diferença. O motivo é simples: quando se encontra uma lesão nas fases iniciais, há três benefícios para a criança. “O primeiro é que o tumor tem uma dimensão menor”. Isso facilita o procedimento cirúrgico, se for o caso. O segundo benefício é que diminui a possibilidade de encontrar uma doença já com disseminação. O terceiro motivo é que evita situações em que a criança passe meses mais debilitada. Isso não quer dizer, conforme destaca, que não exista tratamento se houver diagnóstico tardio.
O especialista explica que o avanço da ciência é fantástico no que diz respeito ao tratamento do câncer. “Nós estamos conseguindo diferenciar dentro de um mesmo tipo de tumor os vários subtipos. E com esses subtipos geneticamente determinados desses tumores, a gente está conseguindo definir melhor quais são os prognósticos e qual o melhor tratamento”, argumenta.
Esse avanço da ciência tem se mostrado revolucionário, segundo Márcio Marcelino. O diagnóstico precoce é o início da caminhada. “Pode ser um baque para a família. Mas é importante que eles saibam que nunca estão sozinhos”. No caso de Flora, o médico já foi responsável por quatro cirurgias. “Estamos na luta. A última cirurgia foi o que ajudou muito na lesão dela”.
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Nesse caminho de Flora, a mãe ensina a ser intensa em todas as horas. Os dias de internação até serviram de inspiração para compor um hino de levante feminista. Entre os versos está: “resistência em mim se acendeu”. Mas a menina também ensina, mesmo com o dodói e tão criança, que é necessário tagarelar, sorrir e lutar a cada dia.
Fonte: AGÊNCIA BRASIL
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