“Eu não queria mais, e ele continuou. Eu falava ‘não’, e mesmo assim ele continuou. No dia seguinte, eu chorava na escola com crise de ansiedade. Demorei anos para perceber o que tinha acontecido.” Este é um trecho do relato de Ana Clara* ao R7, mais uma vítima de abuso sexual no Brasil.
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Os crimes de estupro e estupro de vulnerável bateram recorde histórico de registros em 2022, de acordo com dados inéditos divulgados nesta quinta-feira (20) pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
De 2011 a 2022, os abusos sexuais cresceram de forma exponencial, com queda apenas em 2015 e em 2020, ano de início da pandemia de Covid-19. O número de registros divulgado pelo fórum é devastador, porém representa apenas uma pequena parcela da quantidade real de vítimas. A subnotificação é um grande desafio.
Um estudo divulgado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) em março mostrou que somente 8,5% dos estupros no Brasil são reportados às polícias e 4,2% pelos sistemas de informação da saúde. O número estimado de casos é da ordem de 822 mil, o equivalente a 93 por hora.
Arte R7
Estupro de vulnerável
De acordo com os dados do anuário, 56.820 dos 74.930 casos são de estupro de vulnerável. Isto é, 75,8% das vítimas eram incapazes de consentir com o ato seja pela idade (menores de 14 anos), seja por alguma doença mental ou por apresentarem estado físico que afetava o discernimento, como a embriaguez.
A jovem Ana Clara, moradora da Grande São Paulo, se enquadra nesse grupo. Aos 17 anos, no último ano do ensino médio, ela foi estuprada pelo professor da escola onde estudava, de 27 anos na época, com quem mantinha um relacionamento.
“Eu achava o máximo me relacionar com ele e me achava madura para a minha idade. Quando a gente saía, ele sempre pagava tudo e abria a porta do carro. Também dizia: você não precisa pagar nada, me paga de outro jeito”, relembra a vítima.
Em determinado dia, Ana Clara foi até a casa do professor, que estava reunido com alguns amigos para beber. “Eu percebi que tinha algo estranho. Até hoje eu não sei se ele colocou algo na minha bebida. Eu acho que fui drogada. Nós começamos a transar, mas eu não estava em condições. Não estava 100% acordada. Eu não queria mais, porém ele continuava”, desabafa.
Crescimento das notificações
O anuário mostra que o aumento das notificações de estupros pode estar relacionado ao maior acesso das vítimas à informação, por meio de campanhas de conscientização do governo e da imprensa, e ao empoderamento das mulheres.
“No entanto, este argumento precisa ser relativizado quando verificamos o perfil das vítimas. No Brasil, 6 em cada 10 vítimas são vulneráveis com idade de até 13 anos, que são vítimas de familiares e outros conhecidos. Ou seja, ainda que estas crianças e adolescentes estejam mais informadas sobre o que é o abuso, é difícil crer na hipótese do empoderamento como única explicação para o fenômeno”, afirma um dos pesquisadores do FBSP.
O período da pandemia, com rígidas medidas de isolamento social, também é citado como um fator para o aumento do registro de casos de estupro. Com o fechamento das escolas, as crianças e os adolescentes ficaram mais vulneráveis em casa. Muitas denúncias só vieram à tona quando as vítimas voltaram a frequentar as aulas presenciais.
Segundo a delegada Jamila Jorge Ferrari, coordenadora das Delegacias de Defesa da Mulher de São Paulo, a escola é a principal fonte de informação para a polícia em relação aos casos de estupro de crianças e adolescentes.
Os professores têm papel fundamental na detecção de mudanças de comportamento dos alunos. No período da pandemia, houve um represamento de dados de crimes sexuais.
Lar não é um local seguro
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostra que a própria casa é o ambiente mais inseguro para as vítimas de abuso sexual. De acordo com o levantamento, 68,3% dos estupros ocorreram no local em que a vítima mora ou convive com o próprio agressor. Muitas vezes, o pai, avô, tio, irmão ou vizinho é o responsável pelo crime.
No ano passado, entre os casos de estupro que envolvem vítimas de até 13 anos, os principais autores foram familiares (64,4% dos casos) e 21,6% eram conhecidos da vítima, mas sem relação de parentesco.
Entre as vítimas de 14 anos ou mais, chama atenção que 24,4% dos casos foram praticados por parceiros ou ex-parceiros íntimos, 37,9% por familiares e 15% por outros conhecidos. Somente 22,8% dos estupros de pessoas com mais de 14 anos foram praticados por desconhecidos.
Em julho, um homem foi preso sob a acusação de abusar das próprias filhas, de 9 e 12 anos, em Barueri, na região metropolitana de São Paulo. Mais uma vez, o lar se mostrou um ambiente inseguro para as crianças. De acordo com a Polícia Civil, ele não usava preservativo e ainda dava pílulas abortivas às meninas para evitar uma possível gestação.
Casos de estupro por estado
Comparando-se os anos de 2021 e 2022, os estados com as maiores taxas de notificações de estupro e estupro de vulnerável (por 100 mil habitantes) foram Amazonas (37,3%), Roraima (28,1%), Rio Grande do Norte (26,2%), Acre (24,4%) e Pará (23,5%). Enquanto isso, a média nacional ficou na casa de 8,2%.
De acordo com os dados do anuário, os únicos estados que registraram queda nos índices de abuso sexual no país foram Minas Gerais (-8,4%), Mato Grosso do Sul (-2,1%), Ceará (-2%) e Paraíba (-1%).
Desafios
O crime de estupro é classificado, pelos pesquisadores, como uma violência do tipo intrafamiliar. Isto é, aquela que acontece em casa, durante o dia, e que tem como principais vítimas pessoas consideradas vulneráveis — com destaque para as crianças e os adolescentes. Esses fatores tornam o enfrentamento aos abusos sexuais extremamente desafiador.
“Provavelmente estamos lidando aqui com situações de violências de gênero muito arraigadas, imbricadas e naturalizadas nas relações familiares e que são, portanto, transmitidas através das gerações. Esse contexto faz com que seja muito difícil para as vítimas reconhecerem as violências que sofrem e, quando o fazem, terem muita dificuldade em denunciar ou buscar ajuda”, afirma a publicação do FBSP.
Saiba como denunciar
• Ligue 190 (Polícia Militar);
• Ligue 180 (Central de Atendimento à Mulher);
• Acesse o aplicativo Direitos Humanos Brasil;
• Registre boletim de ocorrência na Delegacia da Mulher; e
• Registre denúncia na página da Ouvidoria Nacional de Diretos Humanos.
(Por Letícia Dauer)
Fonte: R7.COM