Rio – “O que é uma vida de artista no mercado comum da vida humana?”, questionou Gal Costa nos primeiros versos da canção “Vida de Artista”, a sexta faixa do disco “Água Viva”, de 1978. É com esta música que Sophie Charlotte define o momento que vive, após a estreia de “Meu Nome é Gal”, filme em que interpreta uma das maiores vozes que o Brasil já escutou. Situada entre as décadas de 1960 e 1970, a cinebiografia dirigida por Dandara Ferreira e Lô Politi eterniza nas telonas o momento em que a baiana Maria da Graça Penna Burgos Costa, ou Gracinha, se transformou na potente Gal.
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O filme chegou às salas de cinema em todo o país na última quinta-feira (12), passados seis anos desde que o projeto teve início. Depois de acompanhar as sessões de pré-estreia em cidades como Salvador, na Bahia, passando também pelo Festival do Rio, Sophie revela a emoção de finalmente se assistir na pele de Gal. “Tem sido um momento de celebração, de festa, porque a sensação é, ao mesmo tempo, de se encontrar coletivamente no cinema e de retomada com essa história que é tão importante pra nossa cultura”, declara a atriz de 34 anos.
“Pra mim, Gal tem a ver com brasilidade, com alegria e com essa transformação da Gracinha até a Gal Costa do ‘Fa-Tal’. Foi um processo lindo de viver. Então, agora, saber que o sonho se tornou a realidade de um filme que vai chegar para muitas cidades do país, isso me encanta. Eu adoro o filme que eu vi. Você pode ver por vários ângulos. Para todos os fãs da Gal, fica o nosso registro amoroso em homenagem a ela. Mas tem ali, também, muito sobre a Tropicália, sobre os artistas que são nossos ícones até hoje, que estavam ali na formação e na resistência contra a ditadura militar num momento expressivo e muito importante”, completa a artista, que conheceu a cantora durante as preparações para o filme, antes de sua morte, em novembro de 2022, aos 77 anos.
A voz
Depois de aceitar o convite para estrelar “Meu Nome é Gal”, Sophie precisou encarar o desafio de interpretar não apenas o jeito tímido da cantora, mas também a voz inconfundível da artista. O filme mistura gravações antigas da Musa da Tropicália com a própria intepretação da atriz, que passou por um longo processo de preparação. “As minhas diretoras confiaram que ia dar certo (risos). Eu fiz aulas, antes de termos o roteiro, com a Mirna Rubim, uma grande preparadora, e, mais próximo do filme, nós fomos para o estúdio do Otávio Moraes, nosso produtor musical, e tivemos a Tatiana Parra, que também é uma super professora, que realmente me ajudou a ter ferramentas para acompanhar essa atleta da música”, brinca.
“A voz dela é impossível de se imitar. O que a gente fez no filme foi um caminho de aproximação, e aí tem uma comunhão, uma homenagem. Tem a voz da Gal no filme, ainda bem, porque eu acho que a memória das pessoas está ligada a emoção que as pessoas constroem ao longo de suas vidas, está ligada a cada respiração dela, e isso seria inviável de recriar em absoluto”, avalia a atriz.
“A gente não esconde nada disso e deixa para cada espectador definir se vai ficar reparando. Pode reparar, não está ali com o intuito de ser invisível, mas sim remontar às situações que criaram esse movimento cultural tão avassalador e inspirador. Vem também com a missão de trazer isso para novas gerações, esse impulso, essa faísca, esse fogo da criação e da liberdade como nortes, mesmo que o cenário político seja o pior possível, que é preciso resistir em alegria”, completa ela.
Por trás da cena
Com duas horas de duração, o filme segue a história de Maria da Graça a partir do momento em que a jovem baiana chega ao Rio de Janeiro e encontra os amigos Caetano Veloso (Rodrigo Lelis), Gilberto Gil (Dan Ferreira), Maria Bethânia — vivida pela diretora Dandara Ferreira — e Dedé Gadelha (Camila Márdila). Lô Politi, que assina a direção e o roteiro final, explica a decisão de ir na contramão das cinebiografias tradicionais, acompanhando a trajetória da cantora até o apoteótico show “Fa-Tal: Gal A Todo Vapor”, em 1971.
“A ideia não era resumir uma vida inteira num período de duas horas. A gente optou pelo recorte justamente porque era o ouro do que a gente tinha da história da Gal e da história da cultura brasileira, a Tropicália em contraposição à Ditadura e como contracultura de muita coisa que estava acontecendo no mundo naquele momento. Quando ela chega no sucesso, como filme, não é tão interessante, porque as coisas ficam muito mais fáceis. A gente quis fugir desse clichê da cinebiografia, um filme conduzido pelos fracassos e sucessos da carreira. A gente queria que o filme fosse levado pelo movimento interno dela, esse momento em que ela fura a bolha, a borboleta que sai do casulo”, comenta a roteirista.
O período histórico também foi um elemento decisivo na seleção do repertório para o filme, como explica Dandara Ferreira: “Gal tem uma consistência musical muito rica, nesse período”, pontua ela, que também dirigiu a série documental “O Nome Dela é Gal” (2017), exibida na HBO. “Tem uma costura muito grande com a narrativa. ‘Qual música é simbólica nesse momento do recorte?’ É ‘Baby’, por isso que ela está tão presente no filme. Ela é mencionada em várias etapas porque foi a grande música desse período que ficou conhecida na voz da Gal. O nosso filme fala sobre essa transformação de uma menina tímida, ‘bossa-novista’ que se transforma em tropicalista, e essa música marca a entrada da Gal no tropicalismo. O filme foi construído com essas músicas que têm uma expressão e que dialogam com a narrativa”, afirma.
Além do sonho inocente
Fã de carteirinha, Dandara destaca que a importância de Gal Costa em sua vida vem de muito antes do projeto para os cinemas. “Acho que eu não sei da minha vida sem ter esse registro da Gal. Sou baiana também, minha casa sempre foi muito musical, comecei a ouvir Gal pequena. Minha admiração pessoal acabou virando uma relação profissional, e que incrível poder ter convivido com Gal, ter conhecido essa mulher. A Gal significa, ainda, na atualidade, aquela Gal (do filme), uma Gal inventiva, que está sempre se conectando com a juventude”, frisa a diretora.
“Ao mesmo tempo, quando eu a conheci, é uma Gal simples, você acha que ela não tinha muita dimensão da grandeza que ela tem, uma mulher muito simples, tímida, reservada, que contrasta totalmente com a grandiosidade dessa artista que a gente vê no palco. Que privilégio é contar a história dessa mulher gigante e que marcou a vida de tanta gente”, celebra.
Para Lô, a relação com a cantora se confunde com a personagem de “Meu Nome é Gal”: “Eu tive pouco contato com ela, foi episódico, algumas vezes durante o processo de desenvolvimento do filme. Nos últimos anos, eu mergulhei muito profundamente na Gal desse recorte. Ela é absolutamente espetacular, misteriosa, difícil de desvendar, você vai se apaixonando loucamente. A minha relação com a Gal, hoje em dia, é um pouco enevoada e misturada à imagem da Gal como a própria Sophie. É uma Gal muito especial e é a minha Gal, sou muito conectada à ela”, afirma a roteirista.
Já Sophie Charlotte diz que a oportunidade de protagonizar o longa representa um divisor de águas em sua vida pessoal. “Para mim, Gal Costa é um farol na minha vida. Pela vivência, pela chance que eu tive, através desse convite irresistível das minhas diretoras, o qual ela endossou, aprovou, autorizou. Os contatos pessoais que eu tive com ela, eu guardo esses momentos com muito carinho. É difícil ter uma dimensão, ter uma imagem só. Tenho muita gratidão. A minha vida também vai ser, para sempre, (dividida em) antes e depois da feitura desse filme”.
(Por Josué Santos (josue.santos@odia.com.br))
Fonte: O DIA